quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Direto de Gênova

Pedro Cardoso Heleno

Enaltecido para encontrar minhas raízes, a vontade de sentir a Itália era bem antiga e estando em território europeu, aproveitei a oportunidade. Em minhas mãos o EuroRail, que disponibiliza a liberdade de seguir o destino de qualquer trem europeu, faltava então decidir a cidade em que visitaria na Itália, para isso contei com o apoio do maior centro de informações mundial: o Google. Meu desejo era estar em uma cidade com belezas naturais, longe das inconveniências de grandes urbanizações e ambientalizada por um charme singular. Com os olhos no mapa achei Gênova, que com sua localização litorânea abriu afluentes em minha imaginação, pesquisei fotos no banco de imagens do Google e confirmei.

O EuroRail te dá liberdade, mas não garantia. Na minha primeira tentativa de viajar cheguei atrasado. Na segunda o trem estava lotado, assim como na terceira. Sem esperanças, estava decidindo outro destino, mas uma última consulta na internet me mostrou um trem noturno com destino a Gênova e escala em Milão. Reserva, tudo certo! As 20h15min me acomodei em um vagão repleto de italianos bem dispostos para uma boa conversa ao estilo italianês, disposição que só foi acabar depois de duas horas, quando o barulho de trem conseguiu niná-los. Lutei para me acostumar com o odor de um vagão com chulés de nacionalidades distintas, mas apos uns 20 minutos, finalmente adormeci.

Acordei às 08h35min quando as placas de uma estação anunciavam: Genova Centrale. Saí do trem com a angústia de um claustrofóbico para inconscientemente gritar: “Estoy en Itaaaalia Porca putana!”. A energia de uma noite de inatividade estava atomicamente bem preparada e precisava ser liberada, começou então Gênova...

Ao sair da estação, uma boas-vindas estimulante, o primeiro astro dançava sozinho no céu provocando uma temperatura de 17 graus que eu até então não tinha experimentado na Europa. Confortavelmente climatizado em meu corpo dos trópicos guiei os passos para ruas que levavam ao Mediterrâneo, no caminho começava a sentir o espírito cultural italiano: vespas guiadas por “ragazzos” que levavam baguetes e tomates, casebres pintados com a cor das flores, “nonnas” a passear com seus carrinhos de feira e o tradicional cheiro da culinária mais difundida no mundo.

Esquina após esquina despontou no horizonte águas azuis acendidas pelo amarelo de um sol imponente, o que já foi suficiente para despertar em mim aquela sensação de liberdade que nos faz cantar. Ao som do irreverente Robert Nesta Marley provei o sal do oceano de Gênova que me fez ter mais sede, certificando a estupidez dessa ideia. Comecei então a contornar as curvas que delimitavam o fim do mar, mas apos uns 20 metros uma barreira de pedras me convidava para parar, o único jeito de chegar a outra praia era voltar e utilizar o calçadão ou fazer estripolia. Podia ate tomar o caminho de um cidadão comum, mas meu passado me condena e ja com um sorriso e uma empolgação pelo perigo apertei minha mochila. Analisei o obstáculo, planejei a rota e tomei a primeira queda. Segunda queda, terceira queda e primeiro corte, so com o sangue quente abandonei a razão dos planos para vencer com a forca.

Do outro lado um presente, pais pescavam com seus filhos demonstrando a beleza daquele relacionamento. Me fez ter lembranças do meu Sauro, que me ensinou a preparar a linha, escolher uma boa isca e ter paciência, o presente sempre vinha depois, com o peixe no anzol minha felicidade, e no sorriso do meu eterno professor um orgulho de pai que sabe do valor que esses momentos representam, uma eterna transmissão de amor e conhecimento da fonte mais pura. Garantindo algumas fotos segui meu caminho.

Enaltecido por tudo que havia presenciado, resolvi sentar em algumas pedras bem posicionadas para uma boa visão do horizonte. Peguei meu caderno de anotações e comecei a jogar com as palavras, frase apos frase percebi estar sendo olhado por dois homens atrás de uma pedra. Inicialmente disfarcei, porem a persistência deles me fez pensar em assalto ou algo parecido, mas não me intimidei pois havia movimento no local. Tentei reatar minha concentração, sem sucesso, eles continuavam a olhar. Notei um rapaz alinhado com suas vestimentas que também lançava olhares em minha direção, por precaução decidi me locomover. Peguei meus companheiros de viagem (a máquina fotográfica e o Ipod) e comecei a andar para o calçadão, nesse momento realizei que eu estava sendo o centro das atenções daquele local, parei para entender a situação, foi ai que o rapaz elegante me abordou: - Buon giorno! Io soy Claudio. Compreendendo meu silêncio ele partiu para o inglês:

- Heellooo, I´m Claudio

- Ohh, I´m Pedro...

- Oook Pedro, so where are you from?

- Brazil…

- Are you here for work or only for vacations?

- Vacations…

Eu ainda estava receoso, por isso respondia objetivamente sem dar aberturas. Mas ele finalmente me esclareceu tudo:

- Are you gay??

- No No No! I’m not gay!

- Capisco, cause you’re in a place where gay people meet each other, so if you are here its because you want something…

- I understand but I didn’t know…

- Capisco, Capisco…

Meu alivio foi instantâneo, assim como o riso. Não podia ser de outro jeito... Eu estava no local mais gay de Gênova vestindo uma camisa meio colada e em minha mochila se destacava um chaveiro com varias fitinhas do Senhor do Bonfim que coincidentemente formavam as cores da comunidade gay, todos os olhares agora se justificavam. Resolvi então conversar com Claudio. Apoio completamente o universo homossexual pois parte da liberdade inerente de cada ser - humano decidir sua sexualidade, entretanto, ainda prefiro o perfume inexplicavelmente perfeito que uma mulher pode ter. Trocamos ideias durante algum tempo quando decidi seguir viagem. Na saída os dois gays que tanto me olhavam e me causavam receio deram tchau, respondi com um sorriso.

A realização de experiências incomuns e inéditas acendiam a minha vontade, sentindo o mundo em meu colo resolvi improvisar. O sol indicava seu descanso no Mar Mediterrâneo que se opunha a uma cordilheira verde e sinuosa que abraça a cidade, por que não desfrutar um entardecer genovense no topo de uma colina? Como toda vontade que se acende ao nascer experimentei alguns momentos de euforia ate a chegada de uma concepção mais realista. Comecei a entender que a cidade se afastava em direção a cordilheira que determinava seu limite, eu me situava na orla, primeiro teria que cortar Gênova de ponta a ponta para chegar na base de um relevo nada modesto, depois viria uma ascensão que desconsiderava a dificuldade da primeira etapa. Essa era a verdade, fatigante e difícil, poderia cair na mediocridade de uma visão realista e optar pela prudência dos fracos que evita ventos fortes, frio e sede, mas ha tempo que vivo um otimismo realista. Seja realista e veja o mundo em preto e branco, considerando os estorvos e evitando as quedas, obtenha um resultado já previsto, incolor e inodoro. Um otimismo realista permite sonhos, cores e essências, presentes que se sobrepõem a dificuldade, todavia, nunca esquecendo que a dança se realiza em um solo que não sustenta utopias irracionais.

Apos banhar meu estômago com molho de tomate, dei liberdade a minha visão, deixei ela contornar aleatoriamente as aconchegantes vielas genovenses que, de acordo com meus cálculos, estavam me direcionando a base da montanha. Nos meus ouvidos apenas o som dos passos, a paz reinava pelo caminho, é inacreditável como a vida se deita naquela cidade, calma e feliz, algumas senhoras cuidavam do jardim enquanto os pés de laranja proporcionavam uma coloração incrível sob a luz do sol. Andei mais alguns minutos ate parar para observar a originalidade de certo portão, imaginei que a casa protegida por ele devia ostentar uma arquitetura diferente e interessante, curioso apertei minha cabeça por entre o pequeno espaço que o portão fornecia, a casa era realmente magnífica, pequena, extremamente bela e muito bem protegida, o alarme soou anunciando minha presença em alguns segundos, não consegui sequer pensar pois o barulho era tão escandaloso que deve ter anulado algumas funções cerebrais minha, me bati como uma libélula na luz ate decidir sair correndo rua acima, passadas largas e intensas fui me distanciando, o escândalo ficou para trás.

Continuei minha meta, cansado resolvi automatizar minhas funções: Roubei uma laranja, me alimentei, sentei, alonguei, subi, virei, bebi os 15 ml de água que tinha, liguei o Ipod, subi, subi, subi outra escada, me perdi, voltei, pensei, subi, roubei outra laranja, azeda, cuspi, subi, sorri, cantei, andei, pedi informação, subi, andei e acabei me dando conta de que eu já estava subindo a montanha. Gênova já se apresentava abaixo dos meus pés e o mar enchia o horizonte, adquirir mais energia para subir e continuei, a cada metro percorrido o ambiente se tornava mais inóspito e bonito, o cansaço e a sede dominavam meu corpo mas minha mente me guiava para um objetivo maior. Não parei mais pelo caminho, o mato ficava mais denso e alguns espinhos começavam a me mal tratar, 20 minutos depois, quando o relógio já indicava duas horas e meia de trilha cheguei ao topo do meu Everest. Meu presente estava ali, simples, alguns punhados de cores, o perfume do verde, a musica do meu coração e a luz do amarelo, me sentei para degustar aquele quadro vivo. Sozinho, ali em cima, eu já experimentava a solidão por alguns dias, me deliciava com ela, com a oportunidade de conversar com meus pensamentos, andar com meu Presente, debater as minhas duvidas e deixar fluir a minha vontade, começava a me conhecer melhor, chegando mais perto de uma redenção.

O sol ia descendo, como uma gangorra ele parecia me levantar, fui invadido por uma sensação única, todos me rodeavam, me beijavam, aqueles que me habitam chegavam disfarçados de energia e calor. Minha solidão companheira, acompanhada, que me faz viver por puro sabor e verdade o amor humano de uns e outros, mesmo que distante. Com essa química que transita distante da ciência meu corpo se fortalecia como uma concha, reluzindo com ênfase minha perola interior.

Já quase noite e minha vontade de voltar não se manifestava, pensar em traçar o mesmo caminho criava uma desmotivação incrível, foi melhor não pensar e apenas agir. Levantei e iniciei um andar embalado pela gravidade, a sede era grande, eu também sentia algumas necessidades fisiológicas inconvenientes, pensei que não iria aguentar chegar ate a cidade mas, mesmo não crendo em um Deus superior, acreditei que ele estava comigo naquele momento, um ônibus municipal passou do meu lado naquela rua um tanto quanto distante e deserta. Rompi todas as barreiras enquanto corria, inclusive a da minha calca que começou a arriar a medida que eu me aproximava do coletivo genovese, o milagre se completou quando a luz vermelha do farol traseiro se acendeu, entrei com a cueca quase completamente exposta, dei um sorriso bem envolvente para aquele Jesus no volante e disse “grazie” por me deixar entrar na sua Arca de Noé.

A 60 kmh via todo o esforço que tinha realizado a 2 kmh serem devorados pelos pneus, em 25 minutos cheguei ao centro da cidade. Procurei o primeiro bar para matar aquela sede, 2 Coronas em 30 segundos foram suficientes, ajudado pela genética de minha mãe sai do bar já sentindo alguns efeitos alcoólicos, nada programado pois ainda teria que procurar algum albergue e eu já me sentia destruído como um bêbado no fim da cachaça. Comecei a procura, mas para isso tive que andar mais, eu não aguentava, comi uma pizza e depois resolvi sentar na calçada da rua em que eu estava, nunca foi tão bom se sentir um mendigo. Foi apreciando aquele breve descanso que um senhor de certa idade atravessou a rua e olhou para mim, desviou o olhar mas depois voltou a me fitar e veio em minha direção.Percebendo que eu não era um indigente ele perguntou se eu estava bem, respondi que sim mas que estava muito cansado para qualquer coisa inclusive para procurar um albergue, com uma educação incrível ele me deu a sua mão para levantar e me indicou uma direção em que provavelmente se acharia uma cama, agradeci a ele com carinho.

Esse espírito humano se tornou raro, o individualismo da Era Moderna nos faz desconsiderar que somos todos irmãos, que ajudar o outro é ajudar a todos, inclusive a si mesmo, pois a sociedade é um círculo bem conectado, um efeito dominó, uma grande Irmandade assim como foi representada em Viva o Povo Brasileiro, onde desconhecidos são ajudados por aqueles que quando menos esperam também recebem uma mão, é um ciclo.

Levantado por aquela boa ação ainda dei mais alguns passos, porém meu limite já havia sido imposto. Fiquei surpreso quando vi que havia parado no mesmo local em que eu cheguei pela manhã, a estação de trem estava ao meu lado e seus letreiros indicavam que um trem partiria as 8:30 para Paris, olhei para o relógio e percebi que tinha 10 minutos para tomar uma decisão e entrar no trem. Tinha estado apenas 12 horas em Gênova, não era minha intenção sair tão cedo de um lugar em que eu havia gostado tanto, mas o tempo é relativo e criado pela mente. Aquelas 12 horas representaram mais do que muita semana da minha vida, vivi experiências eternas, senti o tempo parar e percebi que aquilo tinha durado o que tinha que durar, resolvi fechar aquela perfeição em um pacote e guardar em minha memória, entrei no vagão para Paris.

É sábio saber o inicio e o fim, já dizia a Natureza. A maçã não tem medo de se desatar da árvore para sentir a dor de sua primeira queda, ficar vai fazê-la apodrecer, afinal, tudo na vida tem uma duração, inclusive ela. Não desejo prolongar minha estadia enganando meu corpo com drogas, desejo prolongar meu presente, o meu tempo da mente, pois quando a morte chegar ela vai ser linda, magnífica, e vai botar em uma moldura o quadro que estou a pintar.

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